Vida sobre rodas

Com assento quase sempre garantido, sigo pela vizinhança, de quarteirão a quarteirão, reparando as coisas, as pessoas que não param de chegar. Testemunho a transformação de um bairro, de uma cidade inteira. De um dia para outro, surgem  jardins, sotaques indiano, chinês, brasileiro... diversidade de rostos, vozes e costumes.

A paisagem, meticulosamente cuidada, deixa dúvidas: nativa ou resultado de planejamento urbanístico eficiente? Certamente em harmonia, transforma os quarenta e cinco minutos que me separam de casa, em tempo de meditação -  terapia, no ir e vir do trabalho.

Entretida, com meus botões, não sinto o tempo passar. Não sei nomes, mas reconheço rostos, sigo o guarda-roupa mudando com a estação. A barriga pontuda deu lugar a pequena no colo. Com cabelos cacheados e bochecha rosada, ela ocupa um assento sozinha. Assento esse que antes lhe servira de berço. Veste-se e anda como moça, com autoconfiança, coloca sozinha o bilhete da passagem e fala em alto e bom tom com o motorista – “good morning”.

Na volta pra casa, presencio situações difíceis de acreditar. Ingenuidade que poderia custar muito caro em lugares distantes daqui. A moça à minha frente, sem cerimônia, adianta o jantar: pede uma pizza pelo telefone, abre a bolsa e calmamente soletra número por número do cartão de crédito, incluindo o código de segurança e seu endereço. No outro extremo, o "surfista" chinês equilibrando-se no meio do corredor, de braços cruzados e olhos fechados desafia as freadas e segue, em transe, meditando.

Na rotina dos últimos seis anos, duas vezes ao dia, ainda me espanta a sensação de segurança que sinto ao viajar pela cidade. As vezes tranquila demais. A tecnologia a guiar e a distrair muitos. Pessoas segurando livros, folheando jornais, aproveitando  para se conectarem com o resto do mundo.

O rio Ottawa correndo pelo coração da capital levando vida, lazer e beleza a todos. O por do sol estonteante, escorrega lentamente entre as nuvens,  pintando as corredeiras do rio.  A sombra da tarde, engolindo os barcos, deixa uma lembrança inédita no olhar dos passageiros. No horizonte, o dourado camaleão, por vezes o prateado da neve, revela-se depois da curva. Obra de arte emoldurada pela janela larga, respingada de poeira.

As águas cristalinas que separam culturas, banham a história de franceses e ingleses. As trilhas, em meio a árvores e flores estão povoadas de ciclistas, patinadores, corredores e alguns transeuntes, que, sem pressa, inebriam-se do ar puro, caminhando na contramão do horário de pico. O vai e vem frenético da vida sobre rodas.

Não estou sozinha. Cercada por rostos familiares, de pessoas anônimas, na mesma viagem, sigo com o 14 Bis, com a Maria Gadu, a Ivete, a Legião Urbana, o Barão, a Cássia Eller, o Beto Guedes, Victor e Leo, Renato Teixeira e tantos outros. Uma multidão de sons e lembranças.

O cansaço do dia, logo se mistura a curiosidade do turista, a apreensão do passageiro "analfabeto" no inglês e no francês. Ansiosa, torço  para que ele possa ler ou ouvir e, então  descer no ponto certo.

Entro no limbo: nem céu, nem inferno. Sinto vontade de cantar, de dançar, as vezes de chorar – emoções  resumidas, contidas por trás do sorriso tímido. Penso na saudade que sinto dos amigos no Brasil, na alegria de estar vivendo no Canadá e no quanto essa liberdade, essa qualidade de vida e civilidade deveriam estar ao alcance de todos.

De repente uma esquina. A passos lentos, chego ao meu destino. A noite encontra-me preguiçosamente espalhada na cadeira, curtindo as flores no meu quintal.  Uma pausa curta para então acordar e começar tudo de novo.


Vida que segue...